terça-feira, 5 de julho de 2016

Paisagem

                            Flor Garduño

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A Little Closer to the Edge


                             Flor Garduño

Young enough to believe nothing
will change them, they step, hand-in-hand,

into the bomb crater. The night full
of  black teeth. His faux Rolex, weeks

from shattering against her cheek, now dims
like a miniature moon behind her hair.

In this version the snake is headless — stilled
like a cord unraveled from the lovers’ ankles.

He lifts her white cotton skirt, revealing
another hour. His hand. His hands. The syllables

inside them. O father, O foreshadow, press
into her — as the field shreds itself

with cricket cries. Show me how ruin makes a home
out of  hip bones. O mother,

O minutehand, teach me
how to hold a man the way thirst

holds water. Let every river envy
our mouths. Let every kiss hit the body

like a season. Where apples thunder
the earth with red hooves. & I am your son.


Ocean Vuong

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Vulgaridade

                                         Flor Garduno

Em todo o homem, nada é mais existente e verídico que sua própria vulgaridade, fonte de tudo o que é elementarmente vivo. Mas, por outro lado, quanto mais estabelecido se está na vida, mais desprezível se é. Quem não espalha à sua volta uma vaga irradiação fúnebre, e não deixa ao passar um rastro de melancolia vindo de mundos longínquos, esse pertence à subzoologia e, mais especificamente, à história humana.

E. M. Cioran, Breviário de decomposição

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O mundo está dividido entre os que cagam bem e os que cagam mal.

                             Flor Garduño

"Florentino Ariza se lembrou de uma frase que ouvira menino do médico da família, seu padrinho, a propósito da sua prisão de ventre crônica: "O mundo está dividido entre os que cagam bem e os que cagam mal." Sobre esse dogma o médico elaborara toda uma teoria do caráter, que considerava mais certeira do que a astrologia. Mas com as lições dos anos, Florentino Ariza a formulou de outro modo: "O mundo está dividido entre os que trepam e os que não trepam." Desconfiava dos últimos: quando saíam dos trilhos, era para eles tão insólito que alardeavam o amor como se tivessem acabado de inventá-lo. Os que o faziam amiúde, em compensação, viviam só para isso. Sentiam-se tão bem que se comportavam como sepulcros lacrados, por saberem que da discrição dependia sua vida. Nunca falavam de suas proezas, não confiavam em ninguém, bancavam os distraídos até o ponto de ganharem fama de impotentes, de frígidos, e sobretudo de maricas tímidos, como era o caso de Florentino Ariza. Mas se compraziam no equívoco, porque o equívoco também os protegia. Eram uma loja maçônica hermética, cujos sócios se reconheciam entre si no mundo inteiro, sem necessidade de um idioma em comum. Daí o fato de Florentino Ariza não se surpreender com a resposta da moça: era um dos seus, e portanto sabia que ele sabia que ela sabia."


Trecho de “O amor em tempos de cólera” – Gabriel Garcia Marquez 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

SOB O SOL

                      Hugues de Wurstemberger

Sob o sol em meu leito após a água -
Sob o sol e sob o reflexo enorme do sol sobre o mar,
Sob a janela,
Sob os reflexos e os reflexos dos reflexos
Do sol e dos sóis sobre o mar
Nos vidros,
Após o banho, o café, as ideias,
Nu sob o sol em meu leito todo iluminado
Nu - só - louco -
Eu!

Paul Valéry

quarta-feira, 16 de março de 2016

À une raison

                              Allen Birnbach
Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la
nouvelle harmonie.
Un pas de toi c’est la levée de nouveaux hommes et leur en-marche.
Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête se retourne, – le nouvel amour!

Arthur Rimbaud, Illuminations e Une saison en enfer.

«Um toque do teu dedo no tambor dispara todos os sons e começa a
nova harmonia.
Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua arrancada.
Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, – o novo amor!»

Tradução: Mário Cesariny

terça-feira, 1 de março de 2016

Princípio do dia

                      Robert & Shana ParkeHarrison

Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom-dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde.

Saio para a rua
e vou dizendo bom-dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.

No escritório digo bom-dia.
Dizem-me bom-dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.

E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.

(Amanhã volto a experimentar).


Rui Knopfli

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cântico negro

                              Robert & Shana ParkeHarrison

Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc  Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T’ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
- esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho a esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground

Rui Knopfli

you are welcome to elsinore

                           Robert & Shana ParkeHarrison

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte   violar-nos   tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas   portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


Mário Cesariny

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Amor - pois que é palavra essencial

                Flor Garduño

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.
Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade

Exercícios de Estilo - Namorados

                     Silver Gelatin : Flor Garduno

[…]
Domingo de manhã fui com a Amada para a praia nos rochedos junto do mar vi pela primeira vez o seu corpo nu feito espuma e onda. Ficámos calados (como quem está só) escondidos de todos à beira-água (como quem ama, apetecendo-a como os suicidas), o seu corpo cheirava a maresia (cheiraria?). Numa doidice de beijos e carícias leves beijei seus pés de espuma macia… em lírica, diria: pés de sereia; em realística, diria: pés de virgem (feia); em novelística, da antiga, diria: pés de deusa brinca-brincando na areia; em novelística, novíssima: patitas catitas de centopeia…, beijei seus pés; por ali mesmo a comecei a beijar. Caprichos de libertino: o corpo da Amada ficou lá nos rochedos à beira-água onda infatigável desfeito liquefeito brisa de maresia pairando no bafo quente do ar e eu guardo no meu quarto na minha colecção mais um sexo de donzela conservado em álcool e memória, numa mistura fácil de três por dois, tintos.
[…]

Luiz Pacheco

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

De Si(lên)cio dos Poetas

                     PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA

A crueldade reside ainda, e talvez sobretudo, no recusar-se a servir de objecto de prazer, de conciliação com a realidade. Ê assim que este tipo de arte esteticamente emancipada (acima de tudo esta chamada “poesia moderna) não funciona como representação <clara e pouco usual> da realidade, nem como hipóstase de um mundo imaginado ou como ersatz para frustração existencial, nem como mito: funciona como recusa de colaborar com a totalidade na sua lenta mas constante destruição do indivíduo e da sua livre e autónoma consciência.


Alberto Pimenta

porco trágico I


                                        PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.
a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.
o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.

Alberto Pimenta

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Enquanto o papa não chega

                            PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA


Enquanto o papa não chega
Todos  dão a sua achega*

POR  EXEMPLO:
As autoridades convencem com os dentes.
Os deputados erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura
Os investidores apostam na sementeira
de guarda-republicanos.
Os magistrados justificam o uso
da força com a força do uso.
Os militares apoiam a democracia em
geral e o cão-polícia em particular. 
Os tecnocratas correm o fecho-éclair
para fazer luz sobre o assunto. 
Os psiquiatras metem o dedo no olho do
cliente para lhe aprofundar os desvios. 
Os mestres ensinam os cães particulares
a defecar nos passeios públicos. 
Os escritores erguem a voz acima de todas para
dizer que todas as vozes se devem fazer ouvir.
Os funcionários públicos zelam por que tudo
o que não é proibido seja obrigatório.
Os sacerdotes encaminham a alma
para o sétimo céu.
Os internados no manicómio recebem
coleiras novas com o número fiscal.
Os jornalistas dão peidos que abalam a
qualidade de vida da cidade.
O povo digere tudo porque tem
dentes até ao cu.
Os polícias de choque referem-se
às conquistas de abril.
Os anjos da guarda interceptam os
pacotes com as bombas e explodem.

A visita do papa, Alberto Pimenta


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Do amor

                            Flor Garduño
“A única função do amor é a de ajudar-nos a suportar essas tardes dominicais, cruéis e incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana e para toda a eternidade.”

Emil Cioran

É o louco que existe em nós quem nos obriga à aventura

                                 PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA
“É o louco que existe em nós quem nos obriga à aventura. Se nos abandona, estamos perdidos: tudo depende dele, inclusive nossa vida vegetativa; é ele quem nos convida a respirar, quem nos obriga a tal, e é também ele quem empurra o sangue por nossas veias. Se ele se retirasse, ficaríamos sós! Não se pode ser normal e vivo ao mesmo tempo.”
Emil Cioran

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

EM SILÊNCIO DESCOBRI ESSA CIDADE NO MAPA


                             PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA, ano de 1968/64  

Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.
Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.
Descobri que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.

Cidade que aperto, batendo as asas - ela -
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.

Herberto Helder

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...